domingo, 22 de março de 2020

Receita

Liquefaz-se a dor em lágrimas
E a alma cresce
E espalha-se de novo pelo corpo.

16 de abril de 2011

O esforço árduo

O esforço árduo do espírito,
Em contraste com a lassidão dos membros
Expostos ao sol do meio-dia,
Dá início a um incómodo respirar
Descontrolado
E ativa o alarme sinoidal que nos obriga
A levantar e a procurar desativar
A ansiosa busca de respostas
(Para questões que nos vão parecendo vitais).

14 de abril de 2011

Um castro que tomba

Um castro que tomba
E se reduz a escombros
De cera.

13 de abril de 2011

Bruscamente salto

Bruscamente salto, como a rã,
E avanço três pés quatro pés
Para uma zona húmida
Onde começam a surgir os primeiros caules
Por onde vou subir, como a lagarta,
Para ver onde nasce a luz
Que me envia os ténues raios
Que me orientaram até aqui.

16 de março de 2011

Bruscamente exteriorizo

Bruscamente exteriorizo uma emoção
Que me criticam com frequência
Por não ser nada normal
De facto, revela de mim uma cadência
Muito pouco habitual.

15 de março de 2011

Segredos

Silvedos em que nos embrenhamos
Rodeados de inescapáveis picos
Onde passamos horas
Muito felizes a calar os gritos
E a saborear amoras.

12 de março de 2011

A sombra

A sombra repete-me mal
E prolonga o meu estar abismal
Duplicando-o
E tornando-o ainda mais inexpugnável.

5 de março de 2011

Incaracterístico 3

Incaracterístico
Debruça-se no monte alvo e frio
E deixa-se ir pela neve
Desviando-se dos pequenos arbustos
E dos ursos pardos
Que procuram acertar-lhe com as garras
Quando passa.

4 de março de 2011

Incaracterístico 2

Incaracterístico
Ronda os punhais
Escolhe um pesado e tosco de cabo largo.
Espeta-o profundamente na areia
E mantém-no quieto
À espera que o sangue jorre.

3 de março de 2011

Risos concretos

Risos concretos ignoram as pedras do sal
Que se atira como cristais
Contra o vento
E desfolha quase todas as plantas
Do jardim desprotegido.
Atravessam-no pássaros rasantes
A guinchar alarmados.

2 de março de 2011

O papagaio verboso

O papagaio verboso
voa de árvore em árvore
na sua floresta tropical.
Voa de bico empinado
orgulhoso das cores
que vê nas penas vaidosas
e decide ir exibir-se para a cidade.

Esqueceu-se porém
de que as cores variegavas azul verde e amarelo
não passam de reflexos
da vegetação luxuriante da floresta
em que vivia.

1 de março de de 2011

Incaracterístico 1

Incaracterístico,
fundou um templo móvel.
Não espera que os fiéis a ele recorram:
vai até eles, 
puxando o templo por uma corda,
atada à cintura.

28 de fevereiro de 2011

Ao adormecer

Ao adormecer
obedece sempre ao mesmo ritual:
vira-se de costas, dobra as pernas e encosta-se a mim
para que eu lhe acaricie o sono.

26 de fevereiro de 2011

Recuemos alguns anos

Recuemos alguns anos
dentro do espelho
e ver-nos-emos rejuvenescer:
as boas memórias são um ótimo elixir da juventude.

25 de fevereiro de 2011

Rutilam inertes os teus sonhos

Rutilam inertes os teus sonhos
invadindo os meus
como vagas.
Cavalgas as estepes imensas
contra os ventos austrais
e suspiras intrépida
ultrapassando as fragas.
Sibilas, mulher,
pestanejando muito
para sacudir as areias que voam
a anunciar a chegada das pragas.

Rosnam os deuses
a comandar o teu difícil destino.

24 de fevereiro de 2011

sábado, 21 de março de 2020

Dominemos a sereia rígida

Dominemos a sereia rígida
que ondula em sobressalto
lívida passa por portos inseguros
à procura de um espelho para se ver
porque lhe disseram que era pouco feminina.

23 de fevereiro de 2011

Resistem metais uivantes

Resistem metais uivantes
rangentes à intempérie
que assola os cais.

Vogam pedaços de almas
à procura de tábuas de salvação
que lhes permitam recuperar a calma,
regressar à origem
e chorar as mágoas.

A chuva não cai do céu!
Sobe, nascendo do rio,
em direção às nuvens,
contrariando a natureza.

22 de fevereiro de 2011

A mulher incerta

A mulher incerta
prefere a certeza de uma relação incerta
que a satisfaz
por não ter saturação
à incerteza de uma relação certa
exposta ao desgaste
do excesso de tempo passado juntos
e de compromissos inescapáveis.

21 de fevereiro de 2011

A antiga língua

Recorro à minha antiga língua
a que ensina com precisão e rigor
como se vive em cima de brasas
e se evita acabar em pó e cinzas.

21 de fevereiro de 2011

Rituais habituais

Rituais habituais petrificam
as faces indecisas dos reis.
Coroam-se matinalmente
para sentirem a aura
que desce do círculo valioso
a dominar quem os vê:
espalham-se pelo chão os mantos
esvoaçando deles as graças
que acariciarão os corações dos sentinelas:
um deles matará os reis
durante um sonho
e acordará sobressaltado
sem saber se o fez realmente.

16 de fevereiro de 2011

Renova o sangue a vida

Renova o sangue a vida
que se ensina a si própria a pontuar os dias.

Descem pelas colinas do Olimpo, desfilando, os deuses,

que não se contentam em saber que o são
e se querem exibir aos mortais
impondo-lhes imagens vagas de superioridade
que nem sempre é reconhecida.

15 de fevereiro de 2011

Receita

Liquefaz-se a dor em lágrimas E a alma cresce E espalha-se de novo pelo corpo. 16 de abril de 2011