sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Veneza


As festas delirantes continuam.
Ardem fogueiras nos cais
a iluminar as gôndolas os vaporettos
e os barcos rococó que transportam os convidados.
Borboletas papagaios e faisões azuis enquadram as conversas
dão cor à cena
e atravessam-na
pelo chão ou pelo ar
rapidamente ou devagar
confundindo-se com os vestidos de folhos
sedas penas e lantejoulas 
e com as máscaras
interceptando os sentidos
e impedindo a percepção nítida da realidade.

A música arrepia os corpos
as garrafas dançam no ar
os copos beijam-se e estremecem
o vinho
as palavras abrem-se e voam
por entre risos e uivos.

Há já pessoas que se descalçam
e caminham na superfície da água
a cambalear.

domingo, 12 de dezembro de 2010

O Teu Segredo

Exulto com o ângulo obsceno
formado pelas linhas que partem,
afastando-se, do ponto agudo, tão pequeno
que assinala invisível o local onde guardas escondido o teu segredo.

sábado, 11 de dezembro de 2010

A Memória

A memória incha e chora
enquanto aflora a madrugada
e ao nascer, completo o dia,
pede desculpa por se ter mantido em silêncio durante tanto tempo.

Rio-me com ela agora,
enquanto bebemos espumante alvarinho
e ela se entretém a contornar-me os dedos
com uma navalha sem reflexo.

Guardo penitente todas as pessoas que conheci,
num cofre de conchas, como pérolas,
que ficarão a crescer, a aumentar, mais valiosas.
A memória está encerrada com elas:
uma vida cada pérola
do colar que é a minha própria vida.

Lembrar-se-ão como eu?

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O Meu Poema

A minha confissão diária
ao contrário do que é normal
sai,
não da minha voz humana,
mas do meu instinto animal.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

A Elasticidade das Palavras

Pousa as mãos no peito
a pele gretada passa
enquanto troveja horrivelmente
"This is hot!"
sublinha a mulher excitada
como no filme.

Pega num livro e semicerra os olhos
as letras como formigas de várias castas
passam no canal, nas claves de sol, nas linhas das mãos.
Não é o filme que a excita:

É quando ao ver-te
te toca e os pêlos dos braços
procuram cerejas aos pares
e tu és quem se encosta a ela
e lhe passa as mãos no peito.

Procura, por fim, 
recuperar a elasticidade das palavras
enquanto ela te beija na face,
distraída.

Borboletas

Nas asas quase rápidas
vêem crescer as cores primárias
secundadas pelo aroma
das pequenas margaridas.

Logo o ar se enche de pólen
e as flores de água do orvalho.

Com uma volúpia elegante
voam então de festa em festa
já vaidosas borboletas
e o mundo é todo delas.

Apenas uns dias depois
ao anoitecer
quando, mais uma vez
se olham ao espelho
para irem a mais festas,
inesperadamente,
enlouquecidas pela própria beleza,
tão grande é
e breve,
projectam-se contra o vidro,
que as fere,
ou contra a luz mais próxima,
que as queima e cega.

E as sedas rompem-se, quebradas.

Peixes-alados

Apaixonamo-nos
pela imagem que nos enleva
por uma situação rara
uma curiosidade, um ondular
(por peixes-alados ou por cavalos).

Receita

Liquefaz-se a dor em lágrimas E a alma cresce E espalha-se de novo pelo corpo. 16 de abril de 2011